sexta-feira, 13 de novembro de 2009

GÊNERO LITERÁRIO E AUTOR
UMA LINGUAGEM MUITO BELA


Para Carrez, nessa carta há mais menção de personagens do Antigo Testamento do que do próprio Jesus, além de alguns perceberem no texto um escrito mais judaico do que cristão. Lê-se uma série aparentemente desordenada de discursos morais muito gerais. A linguagem é particularmente elaborada, de rigor e elegância notórios. Percebe-se, por meio de expressões do texto, que o autor ou é de cultura semítica, ou pelo menos foi influenciado pelas Escrituras Judaicas. Mais ainda, o autor é, sem dúvidas, cristão. Mesmo Jesus sendo pouco citado, o eco de seus ensinamentos se faz ouvir. Há uma semelhança entre a epístola de Tiago e a tradição de Mateus, além de alusões aos sacramentos.
Já para Kumell, segundo 1,1 esta epístola é um escrito da autoria de um cristão chamado Tiago, dirigido “às doze tribos da Dispersão”. Tal designação atribuída aos destinatários é ambígua. Poderia indicar judeus residentes fora da Palestina, mas o conteúdo da carta não demonstra que se trate de um cristão falando a judeus. Falta, na verdade, qualquer indício peculiar a um escrito missionário. Se os leitores visados são cristãos, então poderíamos supor que cristãos judeus da Dispersão constituíssem os destinatários intencionais. O que para Kumell é igualmente improvável, porque, dificilmente se designariam cristãos judeus como sendo “as doze tribos”. A única possibilidade restante é a de que Tiago – no mesmo sentido que Gl.6.16; Fl.3.3; 1 Pd.1.1; 2.11; Ap.7.4; 14.1 - se dirija a cristãos, que constituem o verdadeiro Israel e que vivem na terra como num país estranho, pois tem como pátria o céu. Entretanto, isto não se acha claramente expresso.
Para Brown, em Tg.1.1, há uma fórmula introdutória, mas faltam informações sobre remetente, saudações envidadas e algo semelhante a uma fórmula conclusiva. Pode-se dizer que Tiago está mais próxima de uma epístola do que de uma carta, de acordo com a definição de Deissmann, embora tal distinção não se aplique a uma grande variedade de cartas.
Quais os gêneros literários e os estilos que podem ser identificados em Tiago? Essa coleção de observações e instruções morais, frequentemente em estilo gnômico e proverbial, apresentadas com forte tom exortatório, assemelha-se, no conteúdo e no estilo, a todo um corpo de literatura sapiencial do Antigo Testamento.
Para Brown, como acontece com alguns escritos judaicos do período helenístico, Tiago não hesita em usar gêneros conhecidos no mundo greco-romano para veicular seu ensinamento.
Apesar de estar explícito o expedidor da carta, Carrez diz que não se pode afirmar quem é o seu autor, já que as atribuições são dadas a diferentes “Tiagos”. Uma delas é dada a Tiago, irmão de Jesus, que sucedeu a Pedro à frente da igreja em Jerusalém; outra é dada a Tiago, filho de Alfeu, mas alguns autores o identificam como o mesmo irmão de Jesus; outra tradição identifica Tiago, irmão do Senhor, como Tiago, filho de Zebedeu, irmão de João, que seria o autor da carta. É evidente a tendência de se reduzir à unidade várias pessoas do mesmo nome, assim como a tradição tratou as “Marias” e os diversos “Joões”.
Desde o princípio não houve unanimidade com relação à autoria da epístola. Orígenes a atribui a Tiago. Eusébio de Cesaréia, influenciado pelos escritos de Orígenes, não a autentica, mas a aceita a despeito de sua leitura em muitas Igrejas. Apesar de não ser identificado em Tg.1.1 nada que se obrigue a atribuição a um Tiago conhecido no Novo Testamento, isso não exclui a possibilidade de esta ser atribuída mesmo a Tiago, irmão de Jesus, já que este gozava de prestígio para poder se dirigir à comunidade judaica, mas não se pode ocultar as dificuldades de tal atribuição.
Para Johan Konings Esse Tiago “irmão do Senhor” desempenhou um papel de destaque na Igreja-mãe de Jerusalém. É citado como líder da Igreja de Jerusalém pelos Atos dos Apóstolos (At.12.17; 15.13; 21.18) e por Paulo (1 Cor.15.7; Gl.1.19; 2.9,12), e o titular da Carta de Judas intitulada ao Sermão da Montanha, leva a pensar que ela represente um ensinamento semelhante ao que se ensinava na Igreja de Jerusalém, pelos anos 60 d.C., antes da destruição do Templo. Seria assim um testemunho da fé da “Igreja da Circuncisão”, isto é, dos judeu-cristãos que ainda conservavam os costumes judaicos, os cristãos primitivos, por assim dizer.
Para Johan Konings não se deve esquecer que os judeus daquele tempo, fora (e mesmo dentro) da Palestina, usavam a língua grega. A carta de Tiago está escrita num grego muito eloqüente, cheio de figuras retóricas, provocações, exclamações, ironias. Não parece escrito por um lavrador ou pescador galileu, como eram provavelmente os outros três “Tiagos”.
Para Kumell apoiar a idéia de que o irmão do Senhor tenha sido o autor da epístola, fundamentalmente, existem apenas duas considerações: 1) a simples autodesignação (1,1), onde um homem obviamente bastante conhecido se identifica não pelo seu nome ou pela função que desempenha, mas como “servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”; 2) os estreitos, mas provavelmente não-literários, pontos de contato com partes importantes da tradição evangélica.
Entretanto, tais argumentos, destituídos de grande peso, defrontam-se com dificuldades muitos sérias:
1. A linguagem culta de Tiago não é a de um simples palestinense.
2. É dificilmente concebível que o irmão do Senhor, que permaneceu fiel à Lei, pudesse ter falado da “perfeita lei da liberdade” (1.25).
3. Teria o irmão do Senhor realmente podido esquecer toda e qualquer referencia a Jesus e a seu relacionamento com ele, muito embora o autor de Tiago enfaticamente se apresente numa posição de autoridade?
4. O debate em 2.14ss, com um estágio secundário e mal compreendido da teologia paulina, não só pressupõe uma considerável distancia cronológica de Paulo – e Tiago morreu no ano 62.
5. Como o mostra a história do Cânon, somente com grande lentidão e resistindo à oposição, é que a Epístola de Tiago se tornou conhecida e até certo ponto aceita como obra do irmão do Senhor, e, por conseguinte, como apostólica canônica.

ESTRUTURA DA CARTA

Acerca da Estrutura da Carta, Maurice Carrez começa a sua pesquisa fazendo duas perguntas.
Terá ela um plano? Essa sucessão de exortações morais mais ou menos desenvolvidas estaria organizada segundo alguns princípios que lhe dêem coerência e permitam falar de verdadeira redação, e não de simples compilação.
Número variável de pequenas unidades? Essa questão foi colocada seriamente de uns 150 anos para cá, e para responder a ela foram feitas as mais diversas tentativas: existem várias opiniões que vão da divisão da carta em doze exortações, dirigidas às doze tribos, até a renúncia total a procura de organicidade entre os temas tratados.
Carrez cita algumas variantes que abordaram o assunto: A TOB, Nouveau Testament, pag. 699; afirma que “é inútil procurar, na epístola, um plano preciso, fora daquele sugerido pelas mudanças de estilo em Tg. 2,1 e 3,13”. Também algumas descobertas engenhosas como a que vê o plano de Tiago no Salmo 12. E ainda o comentário do P. Cantinat distingue 22 unidades; O Jerome Biblical Commentary encontra 14; A TOB, 19 unidades. Segundo Maurice Carrez, essa diversidade na apreciação dos limites a impor a cada exortação, atesta a ausência de critérios suficientemente reconhecidos como eficazes: o que parece é que cada comentador se restringe a impressões pessoais diante de um texto que escorre por entre os dedos.

PESQUISA FECUNDA: A DE CHR. B. AMPHOUX
Esse pesquisador contemporâneo empreendeu o estudo do problema na base do exame minucioso dos processos de redação (principalmente das partículas que coordenam as frases) e, ao mesmo tempo, na base do exame crítico das divisões do texto nos lecionados mais antigos e mais celebres. Nos inspiraremos largamente neles para propormos a seguinte leitura da carta de Tiago:

1. O capítulo um está todo organizado em torno do tema provação-tentação. Uma primeira parte está compreendida entre os vv. 2-4, de um lado, e o v. 12, do outro. Na segunda parte, os vv. 13-25 desenvolvem a exortação sobre o mesmo tema: Primeiro de modo negativo (12-19ª). “Ninguém, ao ser tentado, deve dizer: ‘É o Senhor que me está tentando!’, “... Porque o mal não vem de Deus (13b-16: em 14-15, segundo o autor, há o mesmo tipo de encadeamento de causas e efeitos que nos versos 3-4).
2. O capítulo dois está organizado em torno do tema da fé, cujo teste foram as provações do capitulo um. Segundo Carrez, o tema da fé é tratado a partir da questão muito mais geral da prioridade da fé sobre as obras, em tom polêmico muito vivo, visto que Tiago se recusa a opor fé e obras, uma vez que a fé tem necessidade das obras para se exprimir como verdadeira. Como na primeira parte do capítulo, o exemplo que faz compreender o enunciado geral é o da presença do pobre na comunidade: não serve para nada encorajá-lo verbalmente a comer e a se vestir. O autor diz ainda que Tiago se apóia em dois personagens do Antigo testamento que manifestaram sua fé pelas obras: Abraão no episódio quando quase sacrificou Izaque. E a prostituta Raab, que indicou o caminho correto aos espias de Josué.
3. O capitulo três e capitulo quatro de 1-10: não é as obras que se deve opor a fé, mas a uma vida que se contentasse com palavras. Segundo Carrez, a exortação avança em três passos, dos quais o segundo e o terceiro começam por interrogação (3,13 e 4,1). “Não quereis todos ser ‘mestres’ ”(3,1) porque este ministério é temível. Ele continua dizendo que de fato o ministro da Palavra está exposto a todos os perigos que o uso da língua faz correr. Referindo-se a Tiago 3,13-18, ele diz que aquele que tem a verdadeira sabedoria não ensina por palavras, porém pelo exemplo de sua boa conduta, e difunde a paz em torno de si.

OS PONTOS ALTOS DA CATEQUESE DE TIAGO

A PROVAÇÃO REVELADORA - UM CRISTIANISMO DE COMBATE ESPIRITUAL, ESFORÇO E AÇÃO.
O valor do cristão se mostra nas provações: elas podem ser perseguições e vexames, mas também acontecimentos muito menos espetaculares, como a perda da riqueza (1,9-11), ou mesmo puramente interiores, como os desejos e as tendências que conduzem ao pecado.

A PRÁTICA EFETIVA
O esforço exigido é efetivo e custoso, porque a Palavra de Deus não é somente uma escuta: ela é um pôr em prática efetivo. E entre as exigências da Lei de Deus não há escolha: ela deve ser observada em sua totalidade; quem a transgride em um ponto transgride-a toda (2,9-11). Por isso, o inimigo é o espírito mundano (4,4ss)

UMA FÉ CONCRETA
A fé se mostra principalmente nas mudanças que introduz na vida concreta: ela deve produzir “obras”, segundo o ensinamento do Antigo Testamento, de João Batista e do próprio Jesus (2,14-26).

UMA OPOSIÇÃO RADICAL ENTRE TIAGO E PAULO?

A este respeito, procurou-se ver em Tiago e em Paulo pontos de vista inconciliáveis. Parece que foram transferidas para o tempo das origens uma problemática e uma polêmica posterior (do século XVI, por exemplo). Com efeito, Paulo, que se fizera o campeão da prioridade da fé em Cristo sobre o cumprimento dos preceitos da Lei mosaica. No processo de justificativa do homem pecador, nunca subestimou as obras produzidas pela fé. Ao contrário, para ele, a fé se manifesta no ágape, que não é puro sentimento interior, mas que sempre se traduz em atos concretos e árduos. Mas devemos notar que Tiago permanece na linha paulina ao apelar para Abraão, pai dos crentes, e não a Moisés. Finalmente, a diferença de totalidade entre Paulo e Tiago se reduz bastante se aceitarmos que Paulo põe o acento mais na primeira justificação do homem pecador, ao passo que Tiago fala da vida dos “justificados” e de sua perseverança na graça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário